Plano-Sequência

Envolto em certa dose de polêmica, talvez devido as vezes em que é esvaziado como uma simples demonstração de virtuosismo técnico, ou ainda pela dificuldade de se obter um consenso no que diz respeito à sua diferença -e se realmente há alguma- para com o plano de longa duração, é fato que o plano-sequência é um dispositivo encantador; se não pela imersão que oferece àquele momento, certamente pelo tempo que nos deixa pensando em como foi complicado realizá-lo. Abaixo, 10 dos meus prediletos entre aqueles que usam pouco ou nenhum artifício externo, como efeitos especiais e cortes disfarçados, e o que me levou a escolhê-los. Também excluí filmes feitos unicamente em um plano ou que simulam o efeito, como Arca Russa, Ainda Orangotangos e Festim Diabólico. Foi muito difícil, terei que fazer uma parte dois.

Nostalgia
Andrei Tarkovsky, Itália/União Soviética, 1983
Fotografia: Giuseppe Lanci
Câmera: Giuseppe Di Biase
Eu não sou o maior fã de Tarkovsky a habitar este mundo cinéfilo, mas compartilho do sentimento que existiram poucos autores de tanta importância e imponência quanto ele, nesta ou em qualquer arte. Diferente de grande parte dos planos de longa duração, inclusive alguns desta lista, Tarkovsky sempre pensou em capturar o tempo de maneira pausada, quase espiritual; e são muitos os exemplos em sua carreira, o mais famoso sendo provavelmente o final de O Sacrifício, mas dificilmente algum deles vence em beleza e poesia esta cena de Nostalgia. Uma poderosa mensagem sobre a vida, que jamais se esforça para sê-lo.

As Harmonias de Werckmeister
Béla Tarr e Ágnes Hranitzky, Hungria, 2000
Fotografia: Patrick de Ranter
Câmera: Jörg Widmer
Assim como Tarkovsky, Béla Tarr sempre teve uma aproximação diferenciada do conceito de tempo no filme, e os planos longos são para ele como unidades básicas da feitura cinematográfica. Para um filme como Harmonias, que dura duas horas e meia e é composto por pouco mais de 30 planos assombrosamente coreografados, fica difícil eleger um favorito, mas a destruição do hospital, que encerra tantas das questões sobre guerra, loucura e existência que ressoam através do filme, é absolutamente inesquecível. Gus Van Sant usou muito do estilo de Béla Tarr para compor o visual de sua trilogia da morte, Gerry em especial.

O Protetor
Prachya Pinkaew, Tailândia, 2005
Fotografia: Nattawut Kittikhun
Câmera: Thanachart Boonla
Esse é um dos melhores exemplos de uso exagerado e preciosista da steadicam num filme, mas se mostra tão divertido que acaba funcionando muito bem. A exemplo de outros ultra-coreografados filmes de ação asiáticos, O Protetor abusa de planos longos, em que o foco está todo na ação, diferente do repicado tão comum no cinema americano. Aqui, Tony Jaa e dublês destroem o set enquanto distribuem sopapos subindo lances de uma escadaria. A cena levou um mês para ser coreografada, e no total a filmagem durou 3 dias, pois a reconstrução do set após cada tentativa consumia muito tempo.

Desejo e Reparação
Joe Wright, Reino Unido, 2007
Fotografia: Seamus McGarvey
Câmera: Peter Robertson
Um dos melhores exemplos de como a extensão do plano pode -e deve- servir para tragar o espectador para dentro do filme, a cena em que Robbie caminha pela praia destruída em Dunkirk e observa atônito o que aconteceu com aquele lugar é impecável, em todos os aspectos. A habilidade de Peter Robertson, combinada com o olhar onírico e sombrio de Seamus McGarvey, estão totalmente à serviço da história, e fazem de tudo para valorizar o intrincadíssimo desenho de produção, que lida com animais, carros, disparo de armas e homens brigando.

Boogie Nights
Paul Thomas Anderson, Estados Unidos, 1997
Fotografia: Robert Elswit
Câmera: Andy Shuttleworth
Sim, grande parte dos longos planos que Paul Thomas Anderson empregou em seus primeiros filmes são realmente citações à Martin Scorsese e especialmente Robert Altman, mas existe algo de novo, de criatividade em processo, que faz destas cenas, e especialmente esta em Boogie Nights, muito pessoais. A maneira inorgânica com que a câmera se move da marquise que serve de título para o filme, seguida pela presença quase fantasmagórica dela no clube onde somos apresentados a um punhado de personagens, transfigura-se, de uma simples ode à famosa sequencia nos bastidores do Copacabana Club em Os Bons Companheiros, para uma maneira muito particular de lidar com uma trama cheia de arestas e pormenores.

Serenity: A Luta Pelo Amanhã
Joss Whedon, Estados Unidos, 2005
Fotografia: Jack Green
Câmera: Mark Emery Moore
Apesar de funcionar como uma espécie de epílogo para Firefly, a divertida e infelizmente mal aceita série que Joss Wheddon fez após Buffy, Serenity também funciona muito bem como uma história separada, e pode até servir para atrair o espectador para o material original. Neste plano, Whedon une os créditos iniciais à uma dinâmica apresentação dos personagens; em menos de 5 minutos acompanhando o capitão Mal pelo corredores de sua nave, já se tem uma ideia básica de quem é quem ali dentro. Mark Emery Moore utiliza zooms de maneira muito esperta, para compensar a impossibilidade de correr ou descer estruturas na mesma velocidade dos personagens.

Fervura Máxima
John Woo, Hong Kong, 1992
Fotografia: Wing-hang Wong
Câmera: Wing-hang Wong
Fervura Máxima foi a despedida de John Woo do cinema oriental, e certamente a porta de entrada dele para o mercado americano, o que é uma pena. Neste delicioso tour de force que combina uma câmera fluida e um monte de gente atirando desenfreadamente pra todos os lados nos corredores de um hospital, Woo extrai o máximo da ação, se colocando como alguém que observa aquilo sem medo do perigo, e por vezes oferece uma tensão quase hitchcockiana, quando nos oferece as intenções do inimigo. Fato curioso, a porção do elevador serve para que a equipe reconfigure todo o set, dando a impressão de que os atores subiram para um outro andar.

Week-End à Francesa
Jean-Luc Godard, França, 1967
Fotografia: Raoul Coutard
Câmera: Raoul Coutard
Godard é um nome que consegue inspirar amor, ódio e indiferença -às vezes tudo ao mesmo tempo- naqueles que estão familiarizados com seu cinema. Sempre experimentalista e curioso pelos artifícios do cinema, neste enorme plano ele vai de uma leveza infantil que lembra Jacques Tati, para algo sombrio e violento. As cores sempre vivas de Raoul Coutard contribuem para que, mesmo com a simplicidade da câmera -afinal se trata apenas de uma panorâmica ao longo de uma rodovia-, a imagem seja absolutamente inesquecível.

Halloween – A Noite do Terror
John Carpenter, Estados Unidos, 1978
Fotografia: Dean Cundey
Câmera: Raymond Stella
O início de Halloween é uma deliciosa descoberta arqueológica para todos aqueles que conheceram Wes Craven antes de John Carpenter. A voyeurística sequência em que assistimos a um dos muitos assassinatos através dos olhos de seu próprio autor, é maravilhosamente sedutora em seu jogo de vítima/algoz, além de ser a grande base para as homenagens que Pânico renderia aos slashers. A fluidez fantasmagórica da câmera de Ray Stella potencializa a presença do perigo enquanto nos faz cúmplices de seu ato.

Kill Bill Vol. 1
Quentin Tarantino, Estados Unidos/Japão, 2003
Fotografia: Robert Richardson
Câmera: Larry McConkey
No meio da enorme quantidade de referências, colagens e remixes que fizeram de Kill Bill um dos grandes carros chefes da cultura pop contemporânea, estão acenos diretos para alguns diretores que inspiraram Tarantino. Esta impressionante viagem pela Casa das Folhas Azuis parece ser uma homenagem para o estilo fluido e tenso dos famosos planos sequência de Brian DePalma; além de ser simplesmente deliciosa de assistir. Dizem as más línguas que, após 6 horas de ensaio e 17 takes para chegar num resultado satisfatório, o operador Larry McConkey desmaiou de exaustão.