A Misteriosa Morte de Pérola


- Não estamos sonhando -

Existem, no cinema brasileiro contemporâneo, poucas coisas tão específicas quanto o trabalho do coletivo cearense Alumbramento. Já estabelecido como um grande exemplo de cinema ferozmente experimental, mas que apesar disso não formata seus filmes como propostas estéticas isoladas, e sim as insere dentro de um corpo narrativo robusto, e quase sempre interessante, o grupo -que é formado principalmente pelos irmãos Luis e Ricardo Pretti, e seus “primos” Pedro Diógenes e Guto Parente- tem nas costas um sem número de curtas estranhos e longas incompreendidos, como Estrada para Ythaca, Os Monstros, No Lugar Errado, entre muitos mais. Mesmo com toda essa vivacidade cinematográfica, eu sempre quis saber o que aconteceria se o grupo tentasse desviar de seu modus operandi original para realizar algo menos radical, o que aparentemente aconteceu em duas parcerias com o diretor carioca Bruno Safadi, que ainda não pude assistir, e acontece também, mas de forma absolutamente diversa daquilo que eu esperava, no recém-lançado A Misteriosa Morte de Pérola, codirigido por Parente e Ticiana Augusto Lima.

O caráter diverso de Pérola se dá através de notas muito discretas, mas que demarcam muito bem o território da dupla, em meio ao corpo do coletivo. Se certo culto à arte, e também as reflexões sobre a forma de contemplá-la, eram quase sempre material fundamental para os filmes do grupo, Pérola é um trabalho muito mais autocentrado, viciado em seu próprio universo da melhor maneira possível. Realizado muito como um exercício de expiação das aflições de ‘ser estrangeiro’ ,que Guto e Ticiana sofriam vivendo na França como estudantes, o filme sufoca em sua crescente sensação de confinamento, mas também liberta, através da maneira tão meticulosa na qual é pensado; logo após a sessão no Janela (que inclusive foi sua estreia mundial), havia pouquíssimas pessoas que não estivessem algo atônitas com a sensação de ter sido tão bem enganadas por uma trama que, em primeiro momento, se anunciava como esse “drama do estrangeiro”, para se desenrolar num efetivamente macabro e maiúsculo filme de gênero.

As inflexões da tensão, do susto, do medo, aparecem de forma bastante singular, mas que deve muito de sua construção às spookyfests americanas de filmes como Poltergeist ou, para um exemplo mais recente, Invocação do Mal, e também aos cinemas que convergem perigo e sensualidade, e que inclusive citadiretamente, como Franju (a conexão com a protagonista de Os Olhos Sem Face é irretocável) e Brisseau; e muito por isso são tão preciosas. Pérola é um filme sobre um clima, uma sensação, que se transfigura na imagem daquela casa tão cheia de portas, janelas, e memórias em vhs; são como portais para um outro tempo, e um outro estado de ser. Talvez alguém leia como uma ode à manutenção da imagem, pois só no granulado de um vídeo antigo o encontro entre aquele que busca e aquela que aguarda pode acontecer, mas percebo muito mais um interesse em entender o vídeo como um lugar de finitude, onde as sensações e expectativas vem para morrer, enquanto se fazem eternas. Guto e Ticiana se encontram, o filme acaba, e voltamos para essas imagens um tempo que não mais existirá. O cinema acontece.

- Este texto é parte da cobertura do 7º Janela Internacional de Cinema do Recife.

A Misteriosa Morte de Pérola (★★★★★)
Guto Parente e Ticiana Augusto Lima, Brasil/França, 2014

IMDB ROTTEN KRITZ FILMOW