- Canção para minha mãe -
Eu passei o fim de semana pensando na maneira como não gostaria de falar sobre Que Horas Ela Volta? mas o filme, em todos os seus caminhos, me levavam de volta à estaca zero. Como seria possível não encharcar o texto com a minha tão viva e pulsante experiência de ser “o filho da empregada”, quando Anna Muylaert e sua irretocável observação dessa fatia tão comum da sociedade brasileira, e tanto por isso de sua cultura, fazem tão belo trabalho em exibir a vida atrás das portas da cozinha? Por isso eu achei melhor não resistir, e deixar que estas ideias tomassem conta da escrita, e o cinema fosse vida, como muito geralmente é. Val poderia muito bem ser a minha mãe, então para as duas eu dedico estes breves escritos.
Vivendo num seio familiar bastante matriarcal onde, creio eu, apenas 30% das mulheres não trabalharam como domésticas, minha experiência com o roteiro e as personagens criadas por Muylaert pode surgir num oposto simétrico daquele experimentado pelos meus amigos mais próximos, com quem comentei o filme após a sessão. Muitos deles se emocionam e criam conexão com a história de Val, por terem tido em suas casas e cozinhas pessoas muito parecidas com ela, com os mesmos receios, mesmo humor, mesma prole ausente; mas para mim, e sou bastante egoísta ao abraçar tão violentamente essa experiência, o impacto surge na verdade por me ver muito mais na linda Jéssica, personagem de Camila Márdila, e na relação dela com a mãe, com a família abastada que a recebe, e com seus sonhos de futuro. Ora, se a Val -maravilhosamente construída por Regina Casé-, é o claro retrato de décadas e décadas de um Brasil feminino e migrante que trabalhou à beira do fogão e do tanque, seja por falta de oportunidades de crescimento, seja porque “é assim mesmo”, Jéssica é uma verdadeira heroína, que tem na sua suposta audácia e arrogância, uma simples vontade de crescer e expandir-se para além de qualquer imposição que sua classe social possa implicar.
Vivendo num seio familiar bastante matriarcal onde, creio eu, apenas 30% das mulheres não trabalharam como domésticas, minha experiência com o roteiro e as personagens criadas por Muylaert pode surgir num oposto simétrico daquele experimentado pelos meus amigos mais próximos, com quem comentei o filme após a sessão. Muitos deles se emocionam e criam conexão com a história de Val, por terem tido em suas casas e cozinhas pessoas muito parecidas com ela, com os mesmos receios, mesmo humor, mesma prole ausente; mas para mim, e sou bastante egoísta ao abraçar tão violentamente essa experiência, o impacto surge na verdade por me ver muito mais na linda Jéssica, personagem de Camila Márdila, e na relação dela com a mãe, com a família abastada que a recebe, e com seus sonhos de futuro. Ora, se a Val -maravilhosamente construída por Regina Casé-, é o claro retrato de décadas e décadas de um Brasil feminino e migrante que trabalhou à beira do fogão e do tanque, seja por falta de oportunidades de crescimento, seja porque “é assim mesmo”, Jéssica é uma verdadeira heroína, que tem na sua suposta audácia e arrogância, uma simples vontade de crescer e expandir-se para além de qualquer imposição que sua classe social possa implicar.
Entretanto, ainda mais importante que isso quando falamos de Que Horas Ela Volta? como um todo, é perceber que não se advoga contra um modelo de sociedade ou contra uma parcela dela, mas sim a favor de uma nova sociedade, a favor da mudança. Por exemplo, o espanto inicial da família rica ao descobrir que a filha de sua serviçal prestará vestibular na mesma instituição que seu mimado filho toma duas vias muito claras na forma das reações subsequentes. A mãe, dondoca belamente construída por Karine Teles, começa a se desfazer de sua polidez e entender a figura de Jessica como uma ameaça gritante à paz de sua residência, já que seu marido cerca desagradavelmente a garota, quase como um predador. É uma metáfora à queda de status que a ascenção de pessoas como Jessica pode significaria nesse novo Brasil que se anuncia? Talvez, mas não deixa de ser um humaníssimo e delicado drama familiar. A segunda via é a de Fabinho -Michel Joelsas, protagonista do sucesso O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, de volta às telas-, que não vai encontrar na garota uma inimiga ou amiga em potencial, mas sim uma pessoa tão capaz, viva e disposta quanto ele, e talvez só esse encontro, sem o choque social que muitos esperariam ver, seja mais importante que qualquer outra interação. Uma bela sequência onde os dois se divertem juntos dentro da piscina, mesmo frente a reprovação das famílias, é curiosamente filmada em câmera lenta, destacando-a daquela realidade. É infelizmente um momento único, quase onírico, tão importante para aquelas pessoas, mas tão absurdo para quem não está dentro daquela mesma água, compartilhando aquela vivência. É a cumplicidade e a compreensão sendo traduzidas em imagem.
E eu evidencio essa última questão de maneira especial, porque vi o filme de Muylaert ser amplamente comparado, e por vezes depreciado, com o Casa Grande de Felipe Barbosa. Me agradou finalmente conferir que, colocados lado a lado, o maniqueísmo milimetrado e didático de Barbosa faz com que seu inexpressivo (ou expressivo por todas as razões erradas, caso alguém assim prefira) filme, desaparece frente a enorme humanização que “Horas” propõe. Não é simplesmente por estarmos observando o mundo do ponto de vista mais fraco que o filme ganha validade, mas sim porque em vez de reforçar velhos conceitos e preconceitos em favor da história, Muylaert prefere dar a ela uma roupagem toda nova. A empregada nordestina não é um alívio cômico e a relação dela com o patrão adolescente não (ou não necessariamente) está calcada em termos sexuais e depreciativos. A patroa vive de fachada e cercada por seus pensamentos classistas, mas isso não faz dela uma mulher que não sofre de verdade, e o patrão não é um ser estéril e frio, mas sim alguém cujas expectativas foram frustradas, vejam só, pelo excesso de oportunidade. O quarto da empregada não é a porta de entrada para a conscientização do jovem abastado sobre o país em que ele vive, mas simplesmente o quarto da empregada. Seja essa ou não seja a visão de Muylaert, adoro que seja um filme pensado e realizado por uma mulher a fomentar tal questionamento. No fim das contas eu não amei este filme por sua política muito bem pensada e fundamentada, mas sim por suas mulheres. Val, Jéssica, e até mesmo Bárbara. Elas choram, elas sorriem, elas cuidam de seus filhos e de seus futuros, elas vivem. Elas são a minha mãe.
Que Horas Ela Volta? (★★★★★)Eu e Myryam, 1992. |
Anna Muylaert, Brasil, 2015
IMDB ROTTEN FILMOW
Parabéns pela resenha! Você colocou em palavras o que eu senti com o trailer e em conjunto com minha expectativa para ver esse filme. :)
ResponderExcluirEspero que você goste do filme! :)
ExcluirLinda resenha. Emocionante. Vontade de ver o filme agora!
ResponderExcluirNão perca! Espero que goste! :D
Excluira cena da piscina é uma das minhas favoritas, e ela chegou exatamente assim pra mim. obrigada por esse post ABSURDAMENTE LINDO.
ResponderExcluir:D <3
ExcluirFelipe André Silva.- Bom demais seu texto....valeu ler esse escrito...ficou um gosto de quero mais!!!! Verei o filme, mas seu texto já valeu....
ResponderExcluirMuito obrigado! :)
ExcluirFilme surpreendente muito realista o cinema chora algumas vezes , cenas bem feitas e Regina Case show
ResponderExcluirQue bom que gostou!
ExcluirMuito bom texto! Parabéns!!
ResponderExcluirValeu, Carreiro! :)
ExcluirMuito bom o seu texto sobre o filme, fico feliz por você, ainda não assisti o filme mas assistirei, um beijo para você e outro para Miriam um mulher também especial!!!
ResponderExcluirMandarei o beijo, rsrs! Obrigado :)
ExcluirTambém compartilhei da mesma visão e sentimento, mas você tem um carisma na forma de montar o texto. Valeu!
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