Sunset Sunrise e Rua Cuba


- A Message to You, Rudy -

Eu tenho certa obsessão por temas relativos a memória, e claramente a manutenção da minha própria. Sou daquele tipo que colecionava entradas de cinema, folhas estranhas, e embalagens de chocolate que ganhava dos amigos. Por isso, me parece divertido não conseguir precisar exatamente o momento em que Júnior e Filipe entraram em minha vida. Lembro do contexto e da motivação mas não da data, o que parece ser um ato falho, uma falta de planejamento dessa pessoa viciada em transformar tudo em eventos. Júnior, que à essa época vivia no interior do Paraná, chegou até mim numa comunidade cinéfila no finado Orkut, onde eramos tratados como os estranhos da classe por, veja só, gostar de filmes que ninguém tinha paciência para ver. Com Filipe, que por morar na mesma cidade que eu esteve mais presente, é verdade, o primeiro contato se deu numa troca de dvds cheios de filmes em avi; o que pra mim era a epítome do companheirismo cinéfilo da metade dos anos 2000.

O que eu quero dizer ao contar estas histórias é que, para mim, o cinema era essas pessoas. Eu me via nos gostos delas, eu aprendia na discordância com elas, a amizade delas era um refúgio mas também uma ininterrupta aula de sensibilidade estética. Não haveria a minha escrita, o meu cinema, o meu Death Proof, o meu Millennium Mambo, a minha Kristen Wiig, o meu Béla Tarr, o meu Joe Swanberg, se não fossem as escritas, os cinemas, e os ídolos deles. Por isso, a experiência de assistir aos filmes que completam um ciclo nas vidas deles, seja dentro ou fora da faculdade que eu também os vi enfrentar, se tornou particularmente poética. Sofrida, de certa maneira. Acho que todos nós sonhávamos que nossos cinemas seriam uma coisa só, mas a vida não quis assim. Porém, eu não caibo em mim de orgulho ao perceber os grandes artistas que meus amigos/irmãos/mestres/pupilos se tornaram.


É curioso perceber que apesar de pertencerem a autores com percepções de mundo e de cinema tão particulares, Sunset/Sunrise e Rua Cuba convergem em um punhado de fatores, que parecem ser definidores também da geração cinéfila a qual pertencemos. São filmes encharcados de referencial, trazendo estampados em si uma trajetória de cinefilia voraz, que se manifesta principalmente através de emulações daquilo que é, ou já foi, caro para quem o realiza. No caso de Rua Cuba, isso pode ser mais perceptível através da intensa texturização e manipulação da fotografia, que remete imediatamente ao cinema de Dario Argento, e também à fluidez do diálogo, que mesmo mantendo um tempo respeitoso diante da mise-en-scène, ainda acha espaço para ser verborrágico e repleto de hiperlinks à figuras da cultura pop.

Esse tipo de diálogo -ou mesmo o diálogo como ferramenta narrativa essencial- não está presente em Sunset/Sunrise, um trabalho muito mais silencioso, mas que também constrói sua progressão em torno da tensão, e do suspeito. Se o filme de Filipe é, guardadas as proporções, um filme de que subverte noções e estruturas do cinema de horror, Junior faz de Sunset um objeto marginal nessa noção contemporânea de medo. Claramente pensado sob a égide dos cinemas estilisticamente anárquicos de Paul Morrissey, Bruce LaBruce, Gregg Araki e, especialmente, o Gus Van Sant de Mala Noche e Garotos de Programa, a trajetória do jovem garoto de programa -delicadamente interpretado pelo amigo Carlos Pedroso- tem notas muito graves de medo, que surgem por todas as tangentes, menos àquelas mais óbvias.


Apesar de negarem certa narrativa clássica, os dois filmes abraçam muito fortemente uma noção de construção temporal onde as pessoas vivem em função do filme, elas são o filme, e seus atos estão eternamente em conflito com aquilo que a diegese propõe. Seja a reunião temperada pelos atos estranhos do inquilino em Rua Cuba, seja a blindagem emocional do jovem de Sunset/Sunrise, os filmes estão eternamente comprometidos com uma verdade que eles não desejam compartilhar, e exatamente aí está o ponto mais importante do meu apreço por eles. Não são trabalhos secretivos, místicos, ou excessivamente reverentes, mas trazem em si a clara assinatura de alguém que parece ter acabado de firmar o pé no chão e encontrado uma estética para chamar de sua. São frescos. Ainda podem receber algum polimento e servir de aprendizado para projetos futuros, mas de nenhuma maneira podem ser tratados como pequenos filmes. Além de torcer para que eles façam grande sucesso, fica aqui também na esperança de um dia efetivamente trabalhar com estes grandes amigos, estes grandes realizadores.


Sunset/Sunrise (★★★★)
Junior Cândido, Brasil, 2015

Rua Cuba (★★★★)
Filipe Marcena, Brasil, 2015

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