Passados há poucos dias o Halloween e o Dia de Finados, a luxuosa introdução de Spectre
na festa do Día de Muertos na Cidade do México oferece uma familiaridade inusitadamente
importante. A sequência sinaliza como James Bond (Daniel Craig) vive em um mundo tão próximo
ao nosso, e, ao mesmo tempo, totalmente desconectado. Vestido de esqueleto de início, o agente do
MI6 não parece menos fantasiado ao se revelar num de seus discretamente extravagantes ternos.
Caminhando acima dos cidadãos comuns, com toda a certeza e autossuficiência do mundo, James
Bond desencadeia a abertura mais explosiva desde o reboot da franquia com Casino Royale (2006).
Com direção novamente assinada por Sam Mendes, Spectre tem muito menos requinte que Skyfall
(2012), o que num palpite associo à troca dos veteranos Roger Deakins (diretor de fotografia que
dispensa apresentações) e Stuart Baird (editor, inclusive de Casino Royale) respectivamente pelos
respeitáveis Hoyte Van Hoytema e Lee Smith, que dentre os grandes títulos em seus currículos
compartilham Interstellar (2014), o que não significa que fizeram aqui um mau trabalho.
O personagem, que fora retrabalhado nestes últimos filmes para um 007 menos experiente e
mais sisudo, vai assumindo ao longo de Spectre suas características clássicas, sendo mais sedutor e
cômico, apegado às gadgets criativas de Q (Ben Whishaw) e expressando volta e meia seu fascínio
por carros. Pessoalmente, a franquia nunca me atraiu até o mencionado reboot, e estas sutis
transformações esclarecem o porquê. Bond tem que responder por sua suposta autoridade enquanto
agente secreto (o poder de juiz, júri e executor que compartilha com grande parte dos super-heróis),
seus métodos violentos e frequentemente irresponsáveis e sua misoginia (apontada pelo próprio
Daniel Craig em entrevista para The Red Bulletin). Apontar estes questionamentos parece negativo,
e não deveria ser, o que é o cerne da estranheza de Spectre. O roteiro escrito a oito mãos e
acompanhado de perto por Sam Mendes e Daniel Craig é “mais que redondo”, é convoluto.
A trama do agente renegado perseguindo sozinho um inimigo inexplicavelmente poderoso já
soa velha por si, e isso se desenvolve para uma jornada pessoal, um triângulo de vendettas que
esforçadamente conecta os quatro filmes, com rostos marcantes dos títulos anteriores sendo
utilizados desde os créditos iniciais embalados por Sam Smith em sua Writing's On The Wall.
Sequência esta com direito a corpos sensuais inflamados, fetiche sexual por polvos e fumaça o
bastante para prenunciar o quão sombrio e elusivo é o “novo” vilão interpretado por Cristoph Waltz
(as aspas, infelizmente, são importantes). O programa 00 é acusado de ser pré-histórico pelo
rapidamente antagonizado novo C (Andrew Scott), que defende a vigilância total e uso de drones
para lidar com ameaças externas (“O pesadelo de George Orwell”, segundo o M de Ralph Fiennes).
Como são dois extremos da questão dos serviços de inteligência, o filme anda sobre uma corda
bamba, questionando seu protagonista ao mesmo tempo que se encaminha para uma defesa de suas
atividades. Os personagens secundários que orbitam Bond têm um espaço aparentemente incomum
para os padrões da franquia, e eles também não perdem tempo em criticar o agente repetidas vezes.
O filme fica entre uma autoconsciência interessante e um efetivo cansaço ou desgosto com o mundo
de 007. São tantas facas de dois gumes que é difícil precisar para o agrado de quem ele foi feito. O
fã de 007 tem tudo, as mulheres, a extravagância, os carros, as gadgets, o bom humor, ao mesmo
tempo que vários destes pontos são problematizados nesta possível conclusão da trajetória deste
James Bond. O filme é corajoso ao questionar, ou covarde ao não tomar uma posição clara? O
questionamento é menos válido por vir de um vilão, por exemplo?
Sempre um caso discutível na franquia, as personagens femininas oferecem uma grande
confusão em Spectre, da perigosamente esquecível participação de Monica Belucci, a viúva
interrogada e sexualmente consolada por Bond, ao confronto com o monstruoso antagonista
interpretado por Dave Bautista, em que a Bondgirl Madeleine Swann (Léa Seydoux) repetidamente
se engaja na luta apenas para ser em seguida descartada como fosse uma inofensiva boneca de pano.
O mais estranho no filme – mas, pasmem, não o mais forçado – é o romance que brota entre
Madeleine e Bond a partir daí. Tal como Moneypenny (Naomie Harris) – que difere da personagem
original de Ian Fleming, “secretamente” apaixonada pelo agente – a srta. Swann, de início, parecia
muito satisfeita em por James Bond em seu lugar, longe de si. Assim, sua entrega ao agente vem
com alguma surpresa (?). O desenvolvimento e desfecho do tal romance, contudo, apresenta algum
rastro de solução para a dicotomia da narrativa.
007 Contra Spectre (★★★)
Sam Mendes, Reino Unido/Estados Unidos, 2015
IMDB ROTTEN FILMOW
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