- Cenas de um Casamento 2.0 -
Não mais que duas semanas atrás, estreou aqui no Recife um filme chamado Miss Violence, que acompanha os desdobramentos muito macabros do suicídio de uma menina de 11 anos e a estranha dinâmica familiar por trás dessa tragédia. Desconfortável para além de qualquer limite, um dos pontos que mais me chamava atenção no trabalho de direção de Alexandros Avranas era que, mesmo sendo um exemplar muito claro do novo cinema grego em toda sua rigidez emocional e certo pânico cronenberguiano do corpo para com o mundo no qual ele habita, o filme parecia muito mais interessado em tentar fazer com que a arquitetura cheia de ângulos carregados e portas semi fechadas fosse um índice de perigo muito mais intenso que o punhado de predadores que povoam cada canto da narrativa.
Não lembro de ter pensado em David Fincher (e especialmente em seu cinema mais recente, iniciado com Zodíaco), até porque já havia visto Miss Violence algum tempo antes de sua estreia, mas logo depois da sessão de Garota Exemplar, foi muito difícil não me envolver nesse questionamento sobre como essa virulência cerceada e podada em todos os lados por um mundo tão industrial, cheio de semitons mortos e paredes de vidro, parece ser uma grande questão para se ler o cinema de Fincher. Se para Foucault “a marca do escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência”, a assepsia que Fincher vem se esmerando para aplicar em seu novo cinema, que muito foge do virtuosismo estético vazio de Clube da Luta ou O Quarto do Pânico, parece ser verdadeira prova de que sua visão é, existe, e está ali como ele a pretende; o que certamente é o maior dos trunfos, para um diretor refém dos regimentos de Hollywood.
Garota Exemplar, no entanto, é um ser com vida própria, que não propriamente pretende lançar nova luz no cinema de Fincher, mas certamente descortina uma séries de facetas que os materiais escolhidos pelo diretor em momentos anteriores não poderiam comportar e suportar. Estamos frente a um suspense, sim, como tudo aquilo que ele fez anteriormente, mas que desta vez se expande, se reconfigura dentro de sua narratividade, e busca outros referenciais que não aqueles já contidos em si mesmo. Roteirizado pela mesma Gillian Flynn que escreveu o livro homônimo de onde tudo se baseia, a trama é um suspense policial que tenta descortinar os motivos por trás do desaparecimento de uma mulher nos subúrbios de North Carthage, no Missouri, e mesmo essa sendo uma sinopse bastante apropriada, quase nada tem que ver com o que efetivamente se desenha na tela.
Ao fugir da inabalável sobriedade -e porquê não dizer industrialização- que norteavam seu cinema desde inícios da carreira, Fincher cria o objeto mais estranho, camp, cheio de classe, e deliciosamente demente que uma tela viu nos últimos anos; provavelmente desde que Herzog chocou a crítica, e alguma parcela do público, com o absurdo que era sua releitura do Vício Frenético de Abel Ferrara. A cada novo enquadramento que isola e evidencia um ator, como fosse ele uma peça neste grande jogo de gato e rato, percebe-se como o rosto, dentro do filme, e principalmente dentro do filme de Fincher é por si só, a maior bandeira da perpétua falta de balanço que existe numa relação humana. Existir como imagem é estar pronto para autodestruir-se.
Ainda que em Garota Exemplar essa loucura se construa por linhas muito discretas, o punhado de piscadelas que se amontoam para desestabilizar as percepções de um espectador mais atento soam como pequenos presentes. O exemplo mais claro é perceber que a escalação do elenco tem muito mais a ver com histórias e imagens extrafilme do que com a efetiva capacidade dramática desses atores. Colocar Ben Affleck como um homem algo abobalhado que tem sua imagem selvagemente explorada pela mídia, Neil Patrick Harris como um esnobe manipulável, e Emily Ratajkowski como a menina inocente que se torna pivô de um escândalo, são associações espertas demais para serem puro acaso. Se este é, também, um filme sobre o poder enfuriante da mídia, essas pequenas conexões são anedotas muito bem elaboradas que explicitam esse diálogo.
Na construção dessa crônica sobre a derrocada da vida perfeita, do casamento perfeito e, por fim, da mulher perfeita (inclusive resumida aqui de maneira irretocável num momento em que Rosamund Pike encara a câmera e todas as expectativas que recaem sobre ela de maneira tão delicadamente feroz), Fincher não aparenta o desejo de fazer grandes testamentos sobre o que quer que seja, mas sim isolar, expandir para além dos limites, e só então filmar o tanto de loucura que existe em cada um desses microcosmos. É, na dissonância da sua trilha e na secura de sua montagem, um festival satírico, e assim, uma ode a si mesmo. Como filme, poderia ser um tanto mais compacto; como experiência, é dos melhores momentos da carreira de um diretor que não tem vergonha de crescer.
David Fincher, Estados Unidos, 2014
IMDB ROTTEN KRITZ FILMOW