O mundo, como visto por James Gray, parece ter cheiro de asfalto molhado depois de uma chuva vespertina, e roupas guardadas por muito tempo. Se, muito geralmente, suas tramas respiram com a urgência de quem está rascunhando às cegas um novo rumo para sua vida, após certo período de letargia, suas composições e, principalmente, sua preferência pelas sombras e pelos tons de sépia parecem ser índices fundamentais do medo que nem sempre suas personagens estão preparadas ou dispostas a comunicar. Era Uma Vez Em Nova York pode mudar o escopo -antes sempre focado numa figura masculina- para o vendaval de expectativas no qual se transfigura o rosto de Marion Cotillard, mas permanece, e talvez potencialize, essa inocência trágica do cinema de Gray.
Na resenha que fiz meses atrás para o excepcional O Lobo Atrás da Porta, comparei a imagem do Cristo Redentor que dá as costas para o drama de Leandra Leal num Rio de Janeiro úmido e abafado, com o delicado zoom out que abre Era Uma Vez…: uma imagem da Estátua da Liberdade vista de costas, que abre até encontrar Joaquin Phoenix, também nos ignorando, e de certa maneira sendo bem mais imponente que o símbolo maior do espírito novaiorquino. Se a delicadeza no olhar que se projeta e aspira viver num momento melhor que este (muito como faziam os personagens de Douglas Sirk, que acaba sendo referência sentimental aqui) vai se tornar a principal grafia do filme, este plano parece ser definitivo em estabelecer que a aspereza também é parte da experiência desta cidade grande, e para uns e outros pode ser sua face mais conhecida.
Outra vez; se anteriormente o corpo e a intensidade de Joaquin Phoenix foram ferramenta fundamental para Gray contar suas histórias, ao se basear em Marion Cotillard ele parece buscar -e certamente encontrar- outra escrita para seu cinema. Continua sendo uma feitura muito climática e dependente do décor, mas o sentimento viaja de certa masculinidade em conflito para encontrar questões tão simétricas quanto congêneres; e acaba por se tornar não mais um questionamento da brutalidade, mas sim da delicadeza. Marion encarna a imigrante polonesa Ewa, que chega à América com sua irmã e planos muito específicos de prosperidade, mas se vê vítima da dureza do sistema. Se nas mãos de um realizador qualquer, as dificuldades dela se tornariam uma falsa epítome da maldade que é parte fundamental do ser humano, o foco aqui é muito menor, e consequentemente muito mais humano. Ewa não é um símbolo, ela é parte de um drama, que obviamente envolve outras peças, mas que diz respeito apenas à sua relação com o mundo e o lugar. Suas culpas católicas, e a degradação em sua moral são, sim, sacrifícios duríssimos que ela faz pensando no bem estar da irmã, mas estes não se colocam como festejos de uma sociedade em decadência, e sim como a infeliz verdade de seu universo.
Sendo assim muito mais sobre experimentar do que sobre agir, as personagens vivem sob certa névoa de mistério quanto à verdadeira intenção em suas ações, que também é algo nova, se comparada, por exemplo, com a claridade nas questões sentimentais/familiares de Os Donos da Noite ou Amantes. Quase como numa commedia dell’arte -e o ambiente do vaudeville em muito remete à esse tipo de encenação- onde nenhum personagem é propriamente mau, a relação que se estabelece lentamente entre Phoenix, Renner e Cotillard, onde os dois primeiros amam da maneira que se veem capazes, mas não deixam de ser algozes em meio à verdade de seus sentimentos, é tão subjetiva quanto possível, já que tudo se vê filtrado pelas barreiras que a moça cria, especialmente por não conseguir se expressar perfeitamente na nova língua. Seu encontro com a família que tanto sonhava achar é um bom exemplo de como, mesmo tendo a chance de voltar a usar sua língua nativa, a comunicação, da maneira como ela conhecia, está sofrendo com os ruídos que este novo ambiente causa.
Inclusive, o título brasileiro perde muito do amplo significado que o original The Immigrant tem a oferecer. Livre das amarras do gênero, Gray pode se referir à verdadeira imigrante, que vem explorar uma nova terra à cata de oportunidades, mas também àqueles homens que exploram novas áreas de seus sentimentos, quando confrontados por uma nova oportunidade. E quem sabe, esse imigrante do título não seja o próprio espectador, que ocupa todos esses espaços com suas experiências e concepções e aguarda respostas que nunca estarão claras o suficiente. Assim como no cinema de Elia Kazan -que tem vários bons exemplos desse tal “filme de migração”-, Era Uma Vez… talvez seja uma investigação muito minuciosa sobre uma grande porção da história, observada através de conceitos muito largos sobre o que é família, e o que é viver em Nova York. E assim como faz Ewa, redescobrir-se, dentro de sua própria redescoberta, é talvez a melhor maneira de compreender esses, e quaisquer outros mistérios que a vida -e o filme- nos propõem.
Era Uma Vez em Nova York (★★★★★)
James Gray, Estados Unidos, 2013
IMDB ROTTEN KRITZ FILMOW