A melhor maneira de realmente compreender o cinema que se faz atualmente no Brasil é muito mais simples do que ver seus longas multipremiados ou mergulhar em seus teóricos mais prolíficos; basta assistir um bom punhado de curtas metragens feitos no último par de décadas e perceber como o cinema (e o cineasta) brasileiro cresceu; não apenas no sentido comercial comum, mas principalmente em personalidade. Essa lista, no entanto, não é um panorama desse crescimento, apenas um memorial à filmes que me marcaram profundamente, e que eu acho que todo mundo deveria ver também.
Cinema SozinhoMaurício Targino, 2004
Digam o que quiserem, mas não existe filme mais clássico no cinema pernambucano do que as aventuras de Horácio em sua ida ao cinema sozinho. Um coquetel de pequenas referências pop, e regionalismos baratos, o filme de Targino traduz bem o experimentalismo tateante dos realizadores pernambucanos em metade dos anos 2000; e ainda tem Hermila Guedes em participação impagável; e de quebra me lembra da minha adolescência, indo ver filmes no Shopping Boa Vista, quando ele ainda era praticável e tinha sessões de arte no sábado pela manhã.
Os Mortos-Vivos
Anita Rocha da Silveira, 2012
O terceiro trabalho de Silveira lança um olhar energético ao velho filme de coming-of-age, ao mesmo tempo em que se mostra um experimento ousado de abstração cinematográfica. Um coquetel de suor adolescente, praia, facebook e melancolia, Anita jamais pretende radiografar uma geração ou mesmo o movimento jovem de uma cidade, mas sim tentar transcrever seus anseios mais urgentes através de cor e som.
Estudo em Vermelho
Chico Lacerda, 2013
De algum tempo pra cá, o cinema pernambucano embarcou numa corrente de consciência política muito forte, e mesmo que isso não seja ruim, o cinema mais livre de narratividades engessadas e discursos panfletários se viu espremido entre esses. O coletivo Surto & Deslumbramento é responsável, desde 2011, por reavivar essa chama do cinema que crê na narrativa e na política, mas que está também interessado em mergulhar no experimento estético. Estudo em Vermelho é provavelmente o melhor exemplo de seus trabalhos; a história de um embate entre a convenção acadêmica e a liberdade do espetáculo é contada através de uma brincadeira muito engenhosa com a música de Kate Bush. E além de tudo é hilário.
A Amiga Americana
Ivo Lopes Araújo e Ricardo Pretti, 2009
Para além de ser um dos mais interessantes diretores de fotografia brasileiros em atividade (Eles Voltam e Quando Eu Era Vivo são boas provas), Ivo Lopes Araújo também dirige com igual versatilidade e criatividade. Neste trabalho, feito com ajuda do Alumbramento, e inclusive dividido com Ricardo Pretti, observamos uma crônica muito singelo sobre a amizade entre uma americana e uma cearense, que se comunicam basicamente através de sentimento. Enquanto escolhe ser “fake” e “kitsch” em cada plano, diálogo, e no sentimento geral de sua encenação, ele se torna um verdadeiro filme de cinema através da simplicidade.
Nº 27
Marcelo Lordello, 2008
Além de ter me mostrado -outra vez- do que os realizadores pernambucanos eram capazes; este trabalho de Marcelo Lordello até hoje ecoa na minha cabeça como uma impecável simbiose de drama, comédia, e sobretudo horror, através de um conto macabro sobre uma terrível desventura fisiológica num banheiro de colégio. Tendo passado por coisa parecida ou não, o nível de tensão é quase insuportável.
Alguma Coisa Assim
Esmir Filho, 2004
Bem antes de Daniel Ribeiro, Esmir Filho já havia feito um filme bastante emotivo sobre a descoberta da sexualidade, ainda que com personagens mais crescidos e menos melosos. Alguma Coisa Assim é certamente seu melhor trabalho em curta, e na carreira só perde para o belíssimo Os Famosos e os Duendes da Morte. Frente a tantas questões sobre amor e autoaceitação que vão surgindo, a fotografia de Marcelo Trotta se torna quase uma personagem; que tanto exalta quanto oprime aqueles figuras perdidas na noite de São Paulo.
Vinil Verde
Kleber Mendonça Filho, 2004
Lembro de ter visto Vinil Verde bem antes de me tornar cinéfilo, e ficar impressionadíssimo em como era possível fazer um “filme com fotos”. Um dos mais queridos trabalhos da já festejada filmografia de Kleber Mendonça Filho, Vinil é adaptação muito macabra de um conto infantil russo, e trata de amor, maternidade, e confiança de uma maneira francamente doentia. A música de Silvério Pessoa sobre as famigeradas luvas verdes assombra os pesadelos de qualquer um.
Fantasmas
André Novais Oliveira, 2010
Antes de fazer enorme sucesso com o premiadíssimo Pouco Mais de Um Mês, André Novais Oliveira construiu este pequeno recorte que impressiona tanto em forma quanto em criatividade. Em apenas um plano aparentemente banal que observa o movimento de uma rua, Oliveira desenrola um épico conto de amor e obsessão, através da conversa de dois colegas, cujo rosto nunca vemos, mas que tem palavras carregadas de sentimentos tão corriqueiros quanto poderosos.
Mauro em Caiena
Leonardo Mouramateus, 2012
Esta foi a primeira, e até agora mais violenta experiência que tive com o cinema do cearense Leonardo Mouramateus. Inegavelmente meu cineasta brasileiro favorito em atividade, o cinema de Leonardo pensa muito sobre coisas que deixaram de ser, ou estão prestes a acabar; e o faz de maneira literal, sempre limitando aquilo que o espectador pode/precisa ver. Mauro, em especial, é uma carta ao tio que deixou a família para morar na Guiana, e assim como a Fortaleza cada vez mais engolida pela especulação imobiliária, se torna cada vez mais uma memória distante, desesperada para continuar existindo.
O Menino Japonês
Caetano Gotardo, 2009
Assim como no cinema de Mouramateus, este filme de Caetano Gotardo evoca um punhado de imagens que nunca poderemos ver para contar uma história que, sim, pode ser sobre amor, mas se coloca muito mais como uma crônica sobre certa sensação de perda e descompasso. Enquanto os dois homens tateiam em busca das palavras que melhor possam definir aquilo que eles sentem, sobre a arte e sobre si mesmos, o sol lentamente se vai, e Gotardo até hoje não me deixou bem certo se isto é um fechar de cortinas ou o momento de ligar os holofotes.