Things fall apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed upon the world(…)
-William Yeats
Para qualquer pessoa que tenha visto Reino Animal, The Rover vai parecer, bem ou mal, exatamente o tipo de filme que se esperaria de David Michôd; se não exatamente como um desdobramento daquela primeira experiência, certamente com a mesma generosa dose de brutalidade e investimento em personagem que seu debut oferecia. No entanto, e ainda guardando as devidas reservas, já que aquele primeiro filme era um conto extremamente [sub]urbano, onde a cidade e sua movimentação desenvolviam um papel de reconhecimento espacial tão minucioso e importante, neste novo trabalho Michôd parece empreender tão grande esforço em se libertar o máximo possível da narratividade clássica e fazer de seu filme um experimento em clima e condução, que acaba por explorar e expor esse processo ao ponto de quase diluir seu sentido.
A princípio parece bastante válido acentuar que The Rover não é acolhedor, em qualquer aspecto; especialmente para pessoas desacostumadas a experiências tão secas, a reação esperada é a completa repulsa. Mesmo sendo uma amálgama muito bem ajambrada de formatos conhecidos, como road-movie, drama pós-apocalíptico e, principalmente, faroeste, cada porção de filme parece ter sido bastante calculada de maneira à deixar o espectador alguns metros distante de qualquer verdadeira conexão com suas personagens. Guy Pearce surge na tela como um fantasma vindo de qualquer lugar tão extraterreno quanto extracampo e nada sabemos sobre ele, tem seu carro roubado por uma gangue cujos crimes nada compreendemos, e empreende atrás desses meliantes uma busca de métodos extremos, que nos infligem mais e mais dúvidas sobre dezenas de “quems” e “o quês” que podem estar em jogo; e cujas pequenas simbologias, que se amontoam mais e mais a cada sequência, acabam se provando algo primárias quando finalmente se compreendem os porquês.
Porém, à parte toda a labiríntica construção que o roteiro de Michôd e Joel Edgerton proporciona, pouco seria feito dessa experiência se não fosse a fotografia de Natasha Braier para capturar exatamente o que é estar no meio do Outback australiano, naturalmente deserto e quente, num futuro distópico que muito remete à selvageria do também australiano Mad Max. Braier é uma diretora de fotografia argentina, que sempre fez um uso muito particular do granulado e da cor para que eles sempre estivesse à pleno serviço da história, os exemplos mais notáveis são o harmônico colorido de A Teta Assustada, e as rústicas texturas de Somers Town e Glue, mas aqui ela se coloca efetivamente como parte do processo criativo. A todo momento é possível ver o grão turbulento formando as imagens, e isso se torna particularmente interessante nos momentos em que o diretor resolve abraçar por completo seus referenciais mais óbvios, esteticamente falando, e apresenta citações visuais muito claras, porém nada oportunistas, à Trilogia da Morte, de Gus Van Sant, e dos Dólares, de Sergio Leone.
Inclusive, essa referência “vansantiana” parece transparecer muito no jovem interpretado impecavelmente -para minha surpresa- por Robert Pattinson. Para além da aparente instabilidade mental, existe algo de muito delicado nessa turbulência, algo certamente relativo ao que uma adolescência envolvida em ambiente tão nocivo pode acarretar, e nesse sentido, o Jay de Pattinson pode muito bem ser uma extensão do adolescente que protagonizava Reino Animal, e cujo futuro parecia cada vez mais nebuloso. Fazer com que o personagem de Pearce desvie de sua rota para compadecer-se e acolher, como possível, os problemas daquele que é a personificação mais urgente de seu inimigo é um apoio muito simplista para as tantas questões sobre humanidade e amizade que povoam o filme; mas ao mesmo tempo que, enquanto pretexto seja muito rasa, a maneira com a qual essa relação se desdobra na tela -com um Pearce que vocifera com amargo prazer sobre o completo abandono e desamparo do rapaz que carrega a tiracolo como mapa vivo para atingir seu objetivo- é inegavelmente cativante.
Mesmo com toda essa intricada rede de signos e possibilidades, parece muito preguiçoso entender The Rover como um simples quebra-cabeça ou um emaranhado que quer ser desatado. Desde seus primeiros momentos até a desconcertante sequência final, cuja alegoria beira o anedótico, a sensação de estar diante de uma pequena porção de um todo é muito forte, e muito bem-vinda. Não que isso tenha a ver com um modelo mais ou menos interessante de cinema, mas encontrar filmes interessados em fatiar o tempo, observar apenas um dos muitos pedaços que surgem disso, e assim ignorar as especulações e teorias, já que entende aquilo como seu universo completo, é sempre uma experiência renovadora, ainda que por vezes extenuante. No caso deste aqui, o “colapso” que precede o tempo do filme em 10 anos não é realmente importante para mais ninguém que não seus sobreviventes; a curiosidade precisa se conformar.
The Rover – A Caçada (★★★½)David Michôd, Austrália/Estados Unidos, 2014
IMDB ROTTEN KRITZ FILMOW