Se a condição vampiresca dos personagens não fosse a principal fonte de publicidade para Amantes Eternos, o filme poderia ter um sabor muito mais misterioso. Ainda que Jarmusch sabiamente não explore essa veia da trama com os maneirismos folclóricos e lúdicos sempre utilizados pelo cinema no trato com a lenda -em dado momento alguém ironiza o famoso medo que o alho deveria causar neles-, e inclusive faça uso dela como signo poderoso para seus questionamentos quanto ao valor das tradições e do academicismo, é fato que toda a carga cultural que a figura do vampiro acumulou nos últimos anos, e agora se vê obrigada a arrastar contra sua vontade, influencia muito a leitura que se pode fazer de qualquer criação baseada nela.
Perpetuamente banhada em tons de sépia incandescente, a trama acompanha a muito lenta vida de Adam e Eve, que diferente das figuras bíblicas homônimas, não parecem estar propriamente ressentidos com sua “expulsão do paraíso”, já que se referem aos seres humanos como zumbis, e ridicularizam suas maneiras bárbaras. Ele, um músico deprimido e morador da notadamente fantasmagórica Detroit, e ela uma ávida leitora que reside na histórica Tânger, Marrocos. Em comum, os dois tens o amor que sentem pelo outro, e que não sofre tanto com a distância, já que a relação rendeu muitos recasamentos ao longo de séculos e mais séculos. No entanto, este romance parece servir muito mais à uma ideia clássica de romantismo e a partir daí flertar com aquilo que estas personagens absorveram como grande arte e verdadeira ciência ao longo de suas sobrevidas, do que ser simplesmente um conto de amor.
Logo, para além das adversidades que uma existência distante da violência em fincar presas no pescoço alheio acarreta; sendo a maior delas a necessidade de se conseguir sangue através de traficantes, como fosse uma droga de preço e prazer imensuráveis; o único fator que pode perturbar tão estranhamente tradicionalista existência é a ideia de futuro, ou daquilo que o futuro pode acarretar. Logo, aquilo que efetivamente vem a perturbar Adam e Eve é sempre aguardado, sempre mencionado, sempre previsto como tragédia; e vai se transfigurar em Ava, irmã de Eve cuja personalidade não passa muito distante àquela de uma cocainômana em surto, cuja presença é tão rechaçada, quanto seu desprezo por tudo aquilo que sugira o menor resquício de ordem. Sua turbulenta maneira de enxergar as pessoas, o sangue, e principalmente a relação de seu “povo” com o mundo que inadvertidamente os pertence, é o que vai colocar em xeque a eternidade dos amantes. Jarmusch aqui soa apocalíptico, bárbaro, talvez decadentista, mas perfeitamente consciente de que o indivíduo é aquilo que pretende ser.
Amantes Eternos (★★★★)
Jim Jarmusch, Reino Unido, 2013
IMDB ROTTEN KRITZ FILMOW