- A memória dos outros -
As memórias de Rithy Panh sobre os anos vividos no duro regime comunista do Khmer Vermelho surgem como um intenso fluxo de consciência, sem a menor pretensão de doutrinar, justificar, ou efetivamente ensinar algo sobre essa porção da já bastante desconhecida história cambojana. Nesse sentido, A Imagem Que Falta é um processo, uma construção sentimental; um filme sobre como observar algo e transformar isso em memória já é um ato político por si só, e talvez, sobre como o cinema -com seu poder sobrenatural de conservar eternamente os objetos de nossa observação- é um agente revolucionário tão importante, mesmo que não travestido em propaganda. Em dado momento, ao relatar a dura história de uma garotinha que morreu de fome em meio àquela realidade brutalizante, o narrador compartilha uma foto dela e se justifica: “quero me livrar dessa imagem, por isso mostro”. É o cinema como expurgo.
Por conta da escassez de registros do período que não tenham sido maquiados pelo governo, Panh constrói seu filme de maneira singular. Através de bonequinhos de argila organizados sobre cenários de plástico, quase como um tableux vivant, o diretor recria momentos chave de sua vida e da história de seu país; como os castigos nos campos de trabalho, ou as visitas do ditador Pol Pot. A expressão inerte daquelas figuras tão frágeis, talhadas e pintadas à mão, são tão perturbadoras quanto se houvessem atores naquelas posições. A maneira como essas figuras surgem e desaparecem lentamente e são envoltas pelo preciso desenho de som que dialoga com o cenário, faz com que sua presença seja ainda mais orgânica.
Para quem, como eu, não conhecia a carreira do cineasta cambojano (apesar de ter visto sua correta adaptação de Uma Barragem Contra o Pacífico, não havia ligado nome à pessoa antes da sessão), A Imagem Que Falta pode ser uma experiência um tanto extenuante. A maneira aparentemente randômica com a qual somos atirados de uma infância idílica num mundo carinhoso e intelectual para um inferno pintado com tintas negras, e como este caminho se repete incessantemente durante os curtos 90 minutos de duração, fazem o filme inchar e parecer muito maior que isto. No entanto, a compreensão de que este é apenas mais um capítulo na longa narrativa que o cinema de Panh escreve sobre o seu país, complementada principalmente por trabalhos como S-21 – A máquina de morte do Khmer Vermelho e Les gens d’Angkor, faz com que o experimento ganhe um significado todo novo. É o cinema como memória.
A Imagem Que Falta (★★★★)
Rithy Panh, Camboja/França, 2013
IMDB ROTTEN KRITZ FILMOW