Quando Eu Era Vivo + Entrevista


- If You’re Feeling Sinister -

Muito se comenta sobre como Quando Eu Era Vivo, primeiro longa solo de Marco Dutra, é um marco para o cinema de gênero brasileiro, sobre como a carreira do rapaz já flertava com o fantástico desde seus premiados curtas em parceria com Juliana Rojas, sobre como os clichês tão comuns no cinema de terror norte-americano ganham um sabor novo quando falados em português por vozes tão icônicas quanto as de Sandy e Antônio Fagundes; e sim, todos esses argumentos são absolutamente pertinentes para que se compreenda o valor do que Dutra construiu aqui, porém, parece passar por debaixo do radar de alguns cinéfilos que antes de toda a relevância histórica, Quando Eu Era Vivo é um filme de personalidade, de alma, de todas essas coisas de que se faz o cinema -e muitos realizadores contemporâneos insistem em contestar de maneira desajeitada-, que sabe comunicar sozinho todos os seus méritos e repelir, também através de sua própria força, todos os rótulos que insistem em forçar sobre ele.

Mesmo em suas parcelas mais claramente emprestadas de outras cinematografias, em especial o spookyfest e os filmes de possessão norte-americanos -aqueles onde espíritos batem portas e demônios vêm atormentar lares pacatos-, existe um charme muito particular aqui, que dialoga especialmente com quem viveu a infância no Brasil dos anos 80 e 90. Além da presença de Sandy e sua voz já ser um índice dessa relação afetiva com um período mais “inocente” de nossa existência, existem imagens como o boneco do Fofão, o disco da Elizângela tocado ao contrário ou a fita vhs gasta; artefatos aparentemente genéricos, mas que estão violentamente associadas à memória coletiva de uma geração, e posteriormente ao universo pop do país. Se aquele boneco de bochechas avantajadas é hoje uma piada, e a lembrança de um medo que me acometeu um dia, no passado ele era a própria personificação do medo, e me parece que numa primeira instância, o filme de Dutra fala sobre encontrar-se em meio à seus temores, sobre como um apartamento transformado em sarcófago pode ser o ambiente ideal para se debater no que te levou a estar ali.

Quando o assisti, algumas semanas atrás, defini o filme como um road-movie sentimental, o que causou estranheza em alguns amigos. Mas ora, o que acontece no corpo de Marat Descartes senão uma movimentação, uma pesquisa por tempos em que as coisas estavam certas, buscando maneiras de acertá-las novamente? Existem exemplos muito claros deste retorno à um tempo que não mais pode ser, como o momento em que o pai repreende o filho adulto como fosse uma criança, ou ainda mais óbvio, quando todos vão visitar o irmão que habitava o filme a partir de memórias e evocações, e este também parece estar bastante regredido. Pode ser a loucura que o acometeu, pode ser a influência do demônio a qual sua alma supostamente foi entregue; mas também pode ser uma bela alegoria de que a relação de uma família também se faz de política, e o gesto de um promove reações e marcas em todos.

Quando Eu Era Vivo (★★★★)
Marco Dutra, Brasil, 2014

IMDB ROTTEN KRITZ FILMOW

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Enquanto eu pensava no que dizer sobre o filme, o diretor Marco Dutra me respondeu algumas pequenas perguntas. Aqui vai a micro entrevista.


-Quando surgiu seu interesse pelo cinema?
Eu me senti atraído por cinema muito cedo, com cerca de dois ou três anos de idade. O filme pelo qual me apaixonei era “A Bela Adormecida”, da Disney. Segundo minha mãe, eu decorava as falas e as repetia o tempo todo. Ainda hoje este é um dos meus filmes preferidos. Disney e os filmes de horror B foram os maiores responsáveis pela minha formação, daí talvez meu desejo estranho de misturar o universo do horror ao da infância.

-Como se deu a concepção de Quando Eu Era Vivo?
Veio quando eu li o livro [A Arte de Produzir Efeito Sem Causa, do Lourenço Mutarelli] e mencionei para o produtor Rodrigo Teixeira que via um filme nascendo daquele material. Isso foi ainda antes do Trabalhar Cansa. Mas só aconteceu depois, em 2011, quando ele achou que a hora de adaptar o livro tinha chegado. Eu e a corroteirista Gabriela Amaral Almeida gostamos muito de filmes de suspense e horror, então fizemos uso das ferramentas do gênero para narrar.

-O que te levou a escolher nomes curiosos como Antônio Fagundes e Sandy para atuar no filme, e o que tem achado da resposta do público?
Fagundes tinha amado o livro. Ele era o ator ideal para o Sênior, e batalhamos para tê-lo no filme. Sandy foi ideia minha, e veio muito para contribuir com sua voz para a personagem Bruna, que estuda música e canta no filme. A recepção tem sido muito bonita, surpreendente até. Recebo, todos os dias, mensagens emocionadas com o filme de gente que não conheço. E os críticos fizeram leituras sofisticadas. Fiquei feliz.

-Uma curiosidade cinéfila; quais filmes você considera essenciais?
Os Pássaros, Hitchcock
Narciso Negro, Powell e Pressburger
Fantasia, Grant e Huerner
A Bruma Assassina, Carpenter
Ganga Bruta, Mauro
Como Era Verde Meu Vale, Ford
A Cruz dos Anos, McCarey
Os Canibais, Oliveira
Síndrome de Caim, De Palma
A Vila, Shyamalan