- Change your hair, Change your life -
Em meados de 1999 Paul Thomas Anderson lançava Magnólia, uma
homenagem virtuosa e pouco modesta ao cinema de Robert Altman, e o
crítico Pablo Villaça escrevia sua afamada análise do filme. Indo
desde uma crítica discreta sobre o peso das atuações até uma
paranoia conspiratoria sobre o uso de signos através da narrativa, o
texto de Villaça se tornou muito famoso por ser base para a
iniciação cinéfila de muita gente -inclusive da minha, confesso-
mas também por ser, numa segunda leitura, um ótimo exemplo de como
o cinema de PTA, muito claramente pensado para ser um experimento
cinemático/sensorial virtuoso, se torna prato cheio para a paranoia
superanalítica de certa porção da crítica. Qual a função das
artes coloridas, o quê significavam os sapos, ou porquê Daniel
Plainview disse aquelas palavras naquela cena final, são muito bons
exemplos de questionamentos que fermentam vigorosamente as
expectativas dessa crítica investigativa, que não consegue conceber
um cinema diferente daquele com três atos e arcos dramáticos
delineados, e ao se deparar com isso só consegue estranhar ou
entender como digressão artística. Obviamente não pensaria que
Vício Inerente existe pura e simplesmente para minar e se divertir
com as expectativas daqueles que planejavam esse tipo de leitura, mas
além de ser um filme delicioso e trazer um frescor perfumado de
maconha para a filmografia de Anderson, ele está visivelmente
esmerado em não se deixar encaixotar ou rotular, e consegue sem
maiores esforços.
O sucesso da empreitada deve muito ao
material original, é claro. Pynchon nunca teve um trabalho
transcrito para as telas por cair na categoria dos “inadaptáveis”,
os famosos livros tão embuídos de vigor literário que desafiam a
capacidade dos roteiristas que tentam objetivá-los num padrão
cinematográfico. A maneira saudável como Anderson faz o texto de
Pynchon encontrar seu lugar na tela me remeteu muito àquilo que Luiz
Fernando Carvalho fez com o Lavoura Arcaica de Raduan Nassar, outro
livro tido como impossível de adaptar, e que virou um grande título
do cinema brasileiro contemporâneo justamente pela coragem que o
diretor teve de ser fiel às palavras já bastante pomposas deixadas
pelo autor do material original. Vício Inerente, o livro, é um
volume modesto com menos de 400 páginas, mas que abarca uma
quantidade tão exasperante de acontecimentos enevoados pela
constante letargia do protagonista Doc Sportello, nomes esdrúxulos
como Shasta Fay Hepworth e Japonica Fenway, violência explosiva e
conspirações afins. De fato um material algo complicado de se
transcrever em filme mas, muito lucidamente, Anderson não tenta
modelar a confusão e as saídas falsas de Pynchon em algo palatável.
Pelo contrário, Vício Inerente, o filme, é uma mistura de neo-noir
com conto de máfia onde ninguém diz ou faz algo efetivamente
relevante.
O Sportello de Phoenix, numa composição impecavelmente
setentista de fala suave, costeletas, e sandálias de couro, é um
detetive particular que cai na sedutora conversa de sua ex-namorada
(Katherine Waterston, deliciosamente assombrosa) e se percebe
investigando o desaparecimento de um corretor de imóveis
multi-milionário. Os métodos de Sportello são algo ridículos,
provavelmente à causa da quantidade de maconha e gás que se colocam
em seu caminho, mas inegavelmente funcionais. Mas como boa
brincadeira de gênero que a adaptação de Anderson jamais nega ser,
o corretor se transforma em parcela modesta de uma grande
conspiração, e esta última de uma ainda maior, e logo se percebe
que Vício Inerente pouco tem do filme de crime que parecia ser, e se
clareia como um abraço muito afetuoso em certa época vivida por
certas pessoas na história americana. Se Boogie Nights fazia melhor
trabalho de reconstrução física de um período, o foco maior deste
aqui parece ser a reconstrução “espiritual”, se assim posso
chamá-la. Existe um clima perpetuamente chapado e lascivo, que
notadamente pertence aos Estados Unidos hippie e marginal
anti-Vietnã, e que é muito bem representado na miríade de
personagens que se esgueiram por todos os cantos da narrativa.
Se
Phoenix é a bandeira máxima dessa parcela da sociedade contrária a
noção de “americano” que corria à época, o detetive Bigfoot
poderia ser o melhor exemplo dela, e de como Pynchon, e Anderson,
estão claramente e felizmente apoiados em um lado da história: um
policial irascível, violento, viciado em chupar bananas cobertas com
chocolate e fazer aparições minúsculas em programas de TV, mas que
não consegue compreender a maneira desregrada e aparentemente
simples com a qual Sportello se mantêm à margem da moral social, e
por conta destes embates acaba tendo que gastar seu ordenado em
terapia. É uma caricatura tão maravilhosamente tridimensional que
se torna muito fácil torcer -se esse é um sentimento que
efetivamente se vá nutrir por qualquer personagem deste filme- para
que o Bigfoot de Josh Brolin consiga atingir qualquer tipo de
redenção, o que de fato termina por acontecer, da forma mais
absurda e anticlimática que um personagem de Paul jamais viu.
Não discordo que seja um posicionamento algo arrogante, mas não consigo deixar de me divertir com a resposta geral ao filme. A impaciência tateante daqueles que não querem, ou não conseguem, deixar de lado as convenções mais “simplistas”, narrativa e esteticamente falando, que o próprio Anderson um dia já usou para formatar seu cinema, soa muito mais como saudade de algo que nunca foi, saudade de um cineasta classicista e acadêmico que nunca existiu, já que a manipulação e experimentação sempre foram seu objetivo. Talvez seja simplesmente falta de paciência com todas as coisas que Vício Inerente é, o que ainda assim soa um pouco estranho, já que a rigidez milimétrica de O Mestre e Sangue Negro tem enorme séquito de seguidores. Talvez não se queira ver Paul Thomas Anderson fazendo rir, talvez não se quer que Paul Thomas Anderson seja agradável, por que isso não o cabe. Espero que Paul Thomas Anderson continue ganhando dinheiro -sabe se lá, como-, e não dando a mínima para o que se espera dele.
Vício Inerente (★★★★½)
Paul Thomas Anderson, Estados Unidos, 2014
IMDB ROTTEN KRITZ FILMOW
Não discordo que seja um posicionamento algo arrogante, mas não consigo deixar de me divertir com a resposta geral ao filme. A impaciência tateante daqueles que não querem, ou não conseguem, deixar de lado as convenções mais “simplistas”, narrativa e esteticamente falando, que o próprio Anderson um dia já usou para formatar seu cinema, soa muito mais como saudade de algo que nunca foi, saudade de um cineasta classicista e acadêmico que nunca existiu, já que a manipulação e experimentação sempre foram seu objetivo. Talvez seja simplesmente falta de paciência com todas as coisas que Vício Inerente é, o que ainda assim soa um pouco estranho, já que a rigidez milimétrica de O Mestre e Sangue Negro tem enorme séquito de seguidores. Talvez não se queira ver Paul Thomas Anderson fazendo rir, talvez não se quer que Paul Thomas Anderson seja agradável, por que isso não o cabe. Espero que Paul Thomas Anderson continue ganhando dinheiro -sabe se lá, como-, e não dando a mínima para o que se espera dele.
Vício Inerente (★★★★½)
Paul Thomas Anderson, Estados Unidos, 2014
IMDB ROTTEN KRITZ FILMOW
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