Faz tanto tempo que a arte insiste em repercutir certa ideia de que a relação entre amor e sofrimento é inexorável, que mesmo esta não sendo de fato uma regra para o bom funcionamento do mundo e seus habitantes ela já está demasiado marcada em nossos imaginários para ser desconsiderada. De todo modo, só o fato de insistir na constante exposição desses apreços e rejeições -e de quaisquer outros sentimentos que sejam- como forma de inspirar no receptor o desejo de perpetuar os seus próprios, o artista que busca em cada percalço de sua própria existência a matéria-prima da criatividade, é sábio e profeta mesmo dentro de eventual ignorância. Sendo assim, Xavier Dolan é um nome que incide diretamente sobre este tipo de leitura terapêutico-sentimentalista do fazer artístico. Talvez não tanto em Laurence Anyways ou Tom à la Ferme, mas claramente presente no resto de sua já robusta obra, a sensação de estar se encontrando com os devaneios mais turbulentos do personagem/autor/pessoa é bastante forte, e felizmente viajou do dispositivo confessional que tanto pontuava Eu Matei Minha Mãe e Amores Imaginários como experimentos estéticos falhos em sua fome por abarcar um mundo e uma sensação que jamais se disseram efetivamente palatáveis, para chegar até Mommy, onde vamos compreender o amor que circula entre Diane e Steve através de seus gestos, músicas, trocas de insultos, e janelas de exibição em metamorfose. Através de Dolan, enfim, e de seu cinema, que precisou ser boutique, boate, e consultório para finalmente conseguir se transformar em inegavelmente respeitável expressão artística.
Olhando para trás, depois desses 7 longos anos de carreira como diretor e mais um punhado na frente das câmeras, os caminhos tortuosos da obra de Dolan se tornam mais claros. Com a confiança arrogante que se espera de um diretor tão jovem, lançar-se no mundo do cinema direto em um longa-metragem, e ainda mais tomando para si todas as funções de maior importância, é um passo grande, e que claramente há de causar tropeços. Ou seja, muitas das críticas que se fazem -com toda razão, é verdade- ao cinema do canadense, estão bastante relacionadas ao fato de seus filmes terem sido a sua escola, e que cada escolha malfadada, indo de fotografia exageradamente preciosista até a falta da mão pesada de um montador na duração dos filmes, não era simplesmente vício de um diretor apaixonado por si mesmo, mas sim uma genuína experimentação de alguém que gostaria, mas ainda não sabia como, ser um autor. Ter esse olhar direcionado para a dimensão do embate entre Xavier e sua criação ao longo dos anos torna a experiência de Mommy bem mais potente, por vários motivos; o mais importante deles sendo perceber que todos aqueles pontos que levaram o diretor a ser ridicularizado por uma porção da crítica e do público eram, sim, firulas desnecessárias, mas não num escopo geral, e sim mal utilizadas nos momentos e projetos nos quais foram utilizadas.
Se a gritaria de Hubert Minel e sua mãe no primeiro filme eram deslegitimadas pelo teor de birra adolescente que o filme inadvertidamente endossava, as brigas entre Diane e Simon em Mommy são legitimadas por artifícios mais inteligentes, como o fato do país ter adotado uma lei que permite aos pais de uma criança com problemas mentais entregá-la aos cuidados do Estado sem precisar de trâmites judiciais, ou mesmo por questões mais simples, como a falta de um pai e a presença dessa mãe tão excêntrica cujas habilidades na maternidade são bastante questionáveis. Se a “perfumaria”, e por esse termo leia-se um uso nauseante de filtros coloridos, slow-motions, e afins, que tanto tornava os protagonistas de Amores Imaginários coisas coloridas e inexpressivas, quase como extensões de sua direção de arte, desta vez existe uma quase sobriedade no trato com a plasticidade no filme. A fotografia ainda é bastante carregada, e o uso da janela 1:1, completamente quadrada como uma foto de instagram, soa um pouco didática em seus anseios de comunicar como a vida daquelas pessoas é sufocante, ideia que se torna ainda menos efetiva nos momentos em que a imagem se estende completamente para um widescreen tradicional evidenciado uma felicidade momentânea; porém, é um tratamento estético honesto, e diria até comedido, para um filme cuja câmera prefere estar quase sempre mergulhada no rosto de suas personagens mas aparentemente não tem interesse em os inquirir; e se tem disfarça bastante bem.
Nesse ponto, é interessante perceber como os filmes de Dolan terminam por ser melhores quando ele se afasta dos holofotes e deixa outros atores bem mais capazes assumirem as posições principais. É fato que sua performance em Tom à la Ferme é substancial, mas outro ator bem treinado faria o mesmo que ele, que não desviaria suas atenções das tantas outras atribulações que acumula. Em Mommy, felizmente, Dolan combina um trio impecável, com Anne Dorval revivendo a mãe de sua primeira parceira com o diretor, mas num escopo absolutamente novo e bem mais cru, e por sorte encontra na companhia de Antoine-Olivier Pilon, de apenas 17 anos, um coquetel de histeria e descontrole tão potente quanto o seu. Melhor ainda do que suas cenas de embate físico e verbal, são aquelas em que a leveza de um ambiente doméstico tão conturbado consegue ter quando de fato se existe um esforço para tal. Os dois cortando legumes para o jantar e dançando ao som de Céline Dion são pedaços muito bem recortados de existência -comparações com o Cassavetes de Uma Mulher Sob Influência, o Pialat de Aos Nossos Amores, ou mesmo o Swanberg de Alexander The Last não seriam de todo descabidas. Junto a eles, numa das mais gratas surpresas que o filme proporciona, está a vizinha com problemas de fala e relações nebulosas com o marido, interpretada delicadamente por Suzanne Clemént. Mesmo não sendo tão bem desenvolvida quanto os pedaços de sua vida sugerem que ela poderia, a presença de Clemént não soa fácil, ou mesmo artificial, e Kyla entra e sai da vida daquelas pessoas com naturalidade impressionante. Talvez seja essa descontrução daquilo que é teatral e virulento, lentamente se transfigurando nas ideias mais visuais e cinematográficas possíveis que faltava aos outros trabalhos de Dolan, e que agora parece jorrar em abundância. Pouco há de farcesco em Mommy, e aquelas porções que efetivamente o são, em nada devem à grande farsa que é ser filho, ser mãe, e entender essa ideia tão absurda de amor eterno.
Mommy (★★★★½)
Xavier Dolan, Canadá, 2014
IMDB ROTTEN KRITZ FILMOW