O Lobo Atrás da Porta + Entrevista


- Só dez por cento é mentira -

Existe algo de estranho na construção térmica de O Lobo Atrás da Porta. Para um filme de atmosfera tão sufocante, que emana um calor tão desagradável, é curioso notar como a fotografia se mantêm muito distante de luzes estouradas ou cores quentes; ou como não se obriga a filmar seus personagens a curtas distâncias o tempo todo, à cata de tais sensações. Esse calor, que toma conta de todos os cantos em todos os planos sem se fazer notar, é apenas um dos muitos mistérios que revolvem a intricada estrutura da estreia de Fernando Coimbra em longa-metragem.

Da primeira vez que o vi (durante a Janela Internacional de Cinema do Recife, alguns meses atrás), lembro de sofrer uma lenta destruição de meu ceticismo quanto a ‘suspenses dramáticos brasileiros’, subgênero que nunca havia me oferecido nada de realmente impactante. E ainda mais impressionante é revê-lo agora, e me perceber caindo de novo em cada uma das deliciosas armadilhas emocionais que Coimbra e sua trupe constroem tão bem, com o agravante de já saber onde cada uma delas estava posicionada. Só ‘filmes de cinema’ tem a capacidade de se reinventar completamente no imaginário de um espectador, e fazer com que cada revisão seja uma experiência nova, bem ou mal, e O Lobo faz isso sem reservas.

À época em que o assisti pela primeira vez, ainda não tinha visto A Imigrante, filme mais recente de James Gray no qual Marion Cotillard interpreta uma polonesa recebida na América pelas costas da Estátua da Liberdade. Foi muito difícil não associar este plano tão poderoso com o início do filme de Coimbra, uma imagem igualmente forte do Cristo Redentor de costas, ao longe, ignorando completamente tudo que acontece ali embaixo. Tirando esta imagem, e um ou dois momentos que o vemos como um ponto perdido no céu distante, o Cristo e todo o ‘ser carioca’ que ele traz consigo jamais vão se fazer presentes no filme, que preserva sua universalidade com destreza louvável; é uma história tão violentamente banal que poderia estar acontecendo agora, em qualquer lugar do mundo.


A trama remete à um whodunit?, gênero de filmes em que se esmiúçam versões sobre um crime até descobrir seu verdadeiro culpado, mas também evoca o Rashomon de Kurosawa em suas mentiras e bifurcações. Essa, inclusive, não é a única das referências veladas que surgem aqui e ali; por exemplo, existe alguma coisa da Cabíria de Fellini na maneira como Leandra Leal caminha desolada através de uma procissão, mas felizmente isso soa mais como uma piscadela aos devaneios cinéfilos de algum espectador do que como ferramenta narrativa. A já citada Leal, é o elo mais forte do elenco, como uma amantes acusada de sequestrar a filha do casal composto pelos também maravilhosos Milhem Cortaz e Fabíula Nascimento. A vida suburbana de viagens de trem, brincadeiras no parquinho e carros velhos cheirando a gasolina ganha um sopro de novidade, com seus signos servindo a propósitos conhecidos, mas que soam perigosos sem um bom motivo -e talvez essa seja uma herança do drama social argentino, que sempre mantêm sua tragédia num lugar extrafilme. Os desdobramentos muito secos dos depoimentos que cada um dos personagens dá, até que se descubra quem afinal pegou a menina, são de uma violência pontual, que cresce discreta, até explodir em duas sequências assustadoras de tão estéreis.

Nesse sentido, Coimbra acertadamente entrega seu filme nas mãos da fotografia de Lula Carvalho, que para além da magia com as cores e o grão, também pensa em travellings longos, que incluem, excluem ou evidenciam personagens junto com a geografia das locações, criando planos-sequência discretos, cheios de certo suspense “doméstico” em sua simplicidade. Num bom exemplo, a ideia de que nosso primeiro contato com a protagonista seja olhando para suas costas e vendo o que ela vê, mas sem realmente saber o que ela sente, enquanto o último contato será num plano simétrico, olhando para seu rosto e tendo liberdade para julgá-la, se assim quisermos, resumem tanto o trabalho de Lula, quanto todo o resto do filme. Coimbra parece acreditar completamente neste mundo em que as noções de vilões e mocinhos estão bastante nubladas, e quer incitar o mesmo exercício da dúvida em quem ainda não o pratica.

O Lobo Atrás da Porta (★★★★)
Fernando Coimbra, Brasil, 2013

IMDB ROTTEN KRITZ FILMOW

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5 perguntas para Fernando Coimbra

-Como começou tua relação com o cinema?
“Muito cedo. Quando eu tinha 10 ou 11 anos de idade, meus pais compraram um video cassete e eu comecei a ver todo tipo de filme. Logo depois, minha avó comprou uma câmera VHS e eu e meu irmão começamos a brincar com aquilo, a fazer pequenos filmes caseiros. Foi alí que eu decidi ser diretor de cinema, e essa ideia nunca mais saiu da minha cabeça.”

-Onde surgiu a ideia de fazer O Lobo, e quanto tempo você ficou trabalhando no roteiro?
“Eu vi uma matéria, numa revista Manchete dos anos 60, sobre uma história famosa de crime passional que aconteceu no Rio de Janeiro. O que me chamou atenção foram os fatos, a força da história e dos personagens. A imprensa tratou a tudo de uma forma sensacionalista e isso me instigou a investigar o que havia de humano, de próximo de cada um de nós, nas atitudes daquelas pessoas. Eu tinha 22 anos, estava na faculdade de cinema ainda. Naquela época escrevi um primeiro tratamento. Era 1998. Fui trabalhando ao logo dos anos, depois engavetei, segui fazendo meus curtas, trabalhando no Teatro Oficina. Em 2008 reescrevi uma nova versão, do zero. Em 2010, achei que estava bastante maduro para tentarmos levantar a grana pra fazer. Dito e feito, no primeiro edital que entramos, ganhamos.”

-Encontrei algumas coisas de Fellini e Kurosawa no filme; você tem referências ou alguém que te inspira nesse sentido, ou não pensa nisso enquanto trabalha?
“Não pensei diretamente em Kurosawa ou Fellini enquanto fazia este filme. Sou um grande fã dos dois e inconscientemente essa influência pode estar em mim. Nesse filme, conscientemente trabalhei com duas referências, 3 Macacos do Nuri Bilge Ceylan e Millenium Mambo do Hou Hsiao-Hsien. Mas eram referências para aspectos específicos do filme. De forma geral, na hora de filmar, vou muito pelo o que a cena pede, o que é melhor para a dramaturgia do filme, mais do que por referências. Mas sempre tenho Sergio Leone, Scorsese, Kubrick e Hitchcock na cabeça, de alguma forma. Na cena da escadaria da igreja da Penha, que foi filmada de uma maneira quase documental, tive um inspiração direta no cinema novo, principalmente no Glauber.”

-Quais são os próximos projetos?
“Estou desenvolvendo o roteiro do próximo longa, chamado Os Enforcados. Novamente um thriller no Rio de Janeiro. Em agosto rodo a minha parte da série O Homem da Sua Vida, pra HBO, com produção da Gullane e dirigido também pelo Daniel Resende e Pedro Amorim.”

-E por fim, uma famigerada curiosidade cinéfila: quais seus 10 filmes prediletos?
“Essa lista é injusta, Sempre falo que minha lista dos 10 filmes tem uns 20. E ela muda conforme o momento. A de agora é essa:
1. Deus e o diabo na terra do sol – Glauber Rocha
2. Era Uma Vez no Oeste – Sergio Leone
3. Cassino – Martin Scorsese
4. Barry Lyndon – Stanley Kubrick
5. Terra em Transe – Glauber Rocha
6. Um dia de cão – Sidney Lumet
7. Psicose – Alfred Hitchcock
8. Satantango – Bela Tarr
9. Fargo – Joel e Ethan Coen
10. Touro Indomável – Martin Scorsese”