- La Strategia del Ragno -
Assim que encostei os dedos no teclado para começar esse texto, comecei a pensar em Pauline Kael e sua radical escolha de jamais rever um filme, o que obviamente contribuía para a mística em torno de sua escrita, e para o ódio causado a cineastas que se viam injustiçados pelos erros que esse modus operandi eventualmente causava. E essa pequena porção de arqueologia cinéfila me ocorreu exatamente porquê, O Homem Duplicado, o qual assisti não muito tempo atrás, foi recebido pelos meus olhos como um filme inabalável em suas certezas, cujo estranhamento que os tons de laranja e marrom pareciam verter funcionava como uma escritura sagrada para aquela diegese, e que aquela luz conversava com aqueles personagens, que conversavam com a tela num sistema fechado, perfeito.Não havia nada no filme que me levasse a querer esmiuçá-lo como fosse um enigma; mesmo não tendo qualquer contato com o texto original de Saramago, eu entendia que Denis Villeneuve transformara uma trama algo simples sobre certo sufocamento existencial, numa ficção científica que bebia nas fontes do Cronenberg setentista. Porém, o tempo e o bombardeio da opinião alheia começaram a enevoar essas certezas, e assim que resolvi dizer algo sobre ele me vi frente à uma dúvida épica em sua simplicidade: o filme precisa ser revisto para ser realmente compreendido, ou essa revisão serve apenas para que eu corrobore, ou não, o quanto a opinião alheia me influenciou nesse processo de absorção? Resolvi acreditar em Pauline, puxar meus registros, e experimentar essa sensação deliciosamente apavorante de escrever à beira do abismo.
O Homem Duplicado surgiu como uma surpresa; menos de um ano depois de surpreender público e crítica com Os Suspeitos, suspense dramático que lhe tirou definitivamente do panteão de cineastas-do-circuito-alternativo, Villeneuve já apresentava outro filme, que mesclava seu recém-conquistado respeito frente à produtores mais robustos, mas aparentava a mesma feitura artesanal de trabalhos como o climático Politécnica, e o irregular Incêndios -que inclusive lhe rendeu uma indicação ao Oscar. Porém, diferente de qualquer coisa que houvesse tentado até agora, este aqui parece muito mais uma conversa entre o próprio Denis, José Saramago, através do livro homônimo que serviu de inspiração para o roteiro, e o espectador, caso este deseje. Esta conversa gira em torno do jogo que se estabelece entre Adam, um solitário professor universitário, e um ator chamado Anthony, a quem ele passa a perseguir depois de descobrir a absurda semelhança física entre os dois. Inclusive, não parece ocasional que o momento dessa descoberta evoque, inclusive plasticamente, a obsessão de Thomas, protagonista do Blow Up de Antonioni.
Assim como o fotógrafo encontrava na imagem ampliada a mesma quantidade de perguntas e respostas para o seu dilema, o primeiro contato de Adam com Anthony se dá quando o professor vê a si mesmo num frame rápido, perdido entre tantos outros de um filme genérico que um amigo docente o havia indicado. E aquele frame permanece ali, perpetuando a presença daquele fantasma, e lentamente adicionando um perigoso componente de dúvida onde há pouco só havia estagnação. Depois de algum tempo, o filme vai se comportar como uma câmara sonora, reverberando a curiosidade de Adam e a curiosidade de Anthony, tão diferentes na maneira como estão postas, até que ambas passem a ocupar o mesmo espaço, propondo que esses dois seres tão díspares também o fazem.
Villeneuve e Antonioni compartilhando reencontros
Muito desse estranhamento também é plástico, e vem na forma de planos angulados que olham para Toronto como um lugar torto, quase ameaçador, e também na escuridão pontual que a fotografia de Nicolas Bolduc sentencia a essas pessoas. Os sopros de luz não surgem como lampejos de proteção e segurança como se poderia imaginar, mas trazem junto deles algo de sobrenatural, que surpreendentemente não é a vertente mais explorada por Villeneuve. Um bom exemplo é o laranja que envolve as duas mulheres da história, e que muito longe de conferir a elas um caráter imaculado, parece mais estar tentando alertá-las, como um índice do perigo que ronda suas vidas tão pacatas ou permeadas por problemas tão banais.
Além da luz, signos como a barriga da grávida, a chave, ou a aranha habitam o filme, e para mim este é um de seus elos mais fracos.Para uma trama que já carrega essa discussão tão potente sobre identidade, usar tamanha imageria como forma de se transformar num enigma lúdico de “o que significa essa cena?” soa bastante desnecessário, ainda que não totalmente condenável. Mas de novo, pode ser que ao sair do livro, essa coleção de imagens tão intrincadas em si mesmas tivessem feito muito sentido; mas como eu não tenho planos para visitar a criação de Saramago tão em breve, vou permanecer acreditando em O Homem Duplicado como um parente não muito distante do espetacular Sob a Pele, de Jonathan Glazer. Ambos procuram na natureza explicações para o que é isso que chamamos de “eu” e fazem um trabalho magnífico em nos deixar sem uma boa resposta.
O Homem Duplicado (★★★★)
Denis Villeneuve, Canadá/Espanha, 2013
IMDB ROTTEN KRITZ FILMOW