Cala a Boca Philip


- "Auto-depreciativo" - 

“Ele estava morando na cidade há nove anos, e só agora começava a percebê-la como seu lar. Caracteristicamente lento, mas perpetuamente enfurecido com o lento tráfego diante dele, Philip foi naquele dia encontrar Mona, sua ex-namorada, com quem ele manteve um relacionamento durante alguns anos de faculdade. Tal como acontece com qualquer indivíduo pontual, Philip detestava pessoas atrasadas, o que normalmente Mona era.”
É o que as primeiras frases da narração literária, didática, e quase documental em seu nível de percepção, que chega até nós através da apropriada tonalidade professoral de Eric Bogosian, tem a alertar sobre Philip Friedman. Jovem autor amplamente festejado por sua estreia e prestes a lançar seu aguardado segundo trabalho, Philip é claramente uma criatura desprezível, que dedica todos os minutos úteis do seu dia a festejar o próprio ego, e para isso se vê compelido a humilhar sistematicamente qualquer pessoa que não o veja como o gênio que ele acredita fervorosamente ser. É um estereótipo muito antigo, o artista que tem para si todas as dores do mundo e não consegue mais lidar com este mesmo mundo de forma saudável. O mais impressionante de toda essa equação é como jamais se consegue tirar os olhos de Philip e sua mediocridade. Curiosidade amena, um crítico novaiorquino disse que o filme rachou a opinião dos colegas: metade odiou ter se visto tão bem caricaturada na tela, a outra metade amou pelo mesmo motivo.

Claramente dirigido pelo mesmo Alex Ross Perry que já nos ótimos Impolex e The Color Wheel contava suas histórias de secura e misoginia através de alguns empréstimos da literatura moderna americana, do mumblecore, e talvez muito mais sentimentalmente do cinema urgente que John Cassavetes e os irmãos Maysles estavam fazendo nos anos 70, Cala a Boca Philip parece ser o resultado final dos diálogos com essas referências, já que seu novo, Queen of Earth, parece ter caminhado para as paragens do cinema de gênero; não posso afirmar pois ainda não vi. Philip, por outro lado, é ricamente fotografado em película 16mm por Sean Price Williams, que inunda a câmera de luz, e afunda a lente no rosto de qualquer personagem para que nos sintamos desconfortavelmente próximos dele, o que no caso do protagonista tem um efeito notável. Além de charminhos discretos, como a tipografia de seu título e sua estrutura discretamente capitular serem muito referentes ao mundo editorial americano da época em que Philip Roth era um recém best-seller, Perry joga aqui e ali uma dose de falsa improvisação e comicidade mórbida que nos faz pensar se este não pretende ser o filho que surgiria se o citado Cassavetes resolvesse ter um filho com seu Woddy Allen contemporâneo, e o garoto passa a infância ouvindo conselhos de um irmão Joe Swanberg mais velho. Tudo é tão amargo e sem razão de ser, que se torna particularmente especial.

queen.
Dos trunfos de Perry, o maior é claramente seu elenco, em especial as figuras de Jason Schwartzman e Jonathan Pryce (já que a essa altura do campeonato todos sabemos que elogiar Elisabeth Moss é chover no molhado – saudades, Peggy). Enquanto o Philip de Schwartzman está num mergulho alucinado dentro de si mesmo, o que para o espectador e sua posição privilegiada e quase hitchcockeana de julgamento é certo de ter um fim desagradável, o Ike Zimmerman de Pryce, numa alusão bastante clara ao mesmo Roth cujas capas já serviram de referência, é um tutor de desagravo e desencanto, um escritor tão amargo e intragável como seu novo protegido, que vive das glórias de um passado distante, e gasta seus dias bebendo whisky envelhecido e dizendo como a maior glória na vida das pessoas que o circundam é tê-lo conhecido. Os dois se conectam como ímãs, numa relação que flutua entre o professoral, a camaradagem, e a competição. Mas para longe disso, as mulheres do filme são sua verdadeira vida e material de conflito. Moss é eternamente fantástica como a namorada que efetivamente consegue se desvencilhar das armadilhas emocionais de Philip e tratar de recriar a própria vida sem aquela nuvem negra, e a subtrama dela ainda traz a sempre encantadora presença de Jess Weixler, uma de minhas atrizes prediletas e que sempre se vê subaproveitada no cinema americano, mas a tríade formada por Krysten Ritter, Joséphine de La Baume e Kate Lyn Sheil, respectivamente como a filha de Zimmerman, a namorada que Philip arranja em sua desastrosa temporada como professor numa faculdade, e um antigo relacionamento, talvez seja o ponto alto das relações do personagem, e um bom parâmetro para avaliar o poder da atuação de Jason. Dos cinquenta tons de incômodo que uma simples expressão vazia pode criar, ele acerta todos, quase num esforço de simetria à vivacidade das personas que usa no cinema de Wes Anderson. Seu rosto se torna signo de coisas que ainda podem ser, mas jamais terão um sabor agradável.

Nos despedimos de Philip ouvindo as Supremes cantarem que ele as deu um verdadeiro amor, e vendo ele perder-se, acabar-se, e virar só mais um na multidão, ainda acreditando cegamente em si mesmo. Se no fim das contas era só um ajuste de contas entre Perry e suas referências, aparentemente está tudo muito bem resolvido.


Cala a Boca Philip (★★★★½)
Alex Ross Perry, Estados Unidos, 2014
IMDB ROTTEN KRITZ FILMOW

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